terça-feira, 6 de maio de 2008
PRIMEIRO CAPÍTULO
P. Sua Santidade, o senhor poderia dar-nos uma idéia de sua vida?
R. Talvez eu tenha de começar contando a vocês o que aconteceu antes de meu nascimento. O título “Sakya Trizin” significa “Detentor do Trono de Sakya”, e meu avô tinha sido o último Trizin em nossa família. Para ter um filho, meus pais foram em peregrinação ao monte Kailash [você pode ver uma fotografia do monte Kailash no nosso Site], ao Nepal, a Lhasa e ao Sul do Tibet, mas não havia o menor sinal de que um filho
pudesse nascer. Eles já tinham perdido todas as esperanças quando chegaram ao Mosteiro Nalanda. um importante Mosteiro
Sakya, ao norte de Lhasa. e contaram aos abades do mosteiro sobre isso. Os chefes ficaram comovidos e muito preocupados,
porque a linhagem da nossa família, a linhagem do Palácio Dólmã [significa Tare], possuía a tradição do mais esotérico ensinamento Sakya e
além disso muitos dos chefes do Mosteiro tinham recebido esses ensinamentos de meu avo, e assim para eles a continuação da
nossa família era muito importante [1 Sua Santidade está sendo modesto. Sua família é considerada sagrada: os primeiros membros da família Khön foram,
segundo se diz, três irmãos da raça celestial chamada Lha-rig que desceram do céu de Abhasvara e se estabeleceram no pico de uma montanha de cristal do Tibet. Dois retornaram logo mas o mais jovem, Yuse, permaneceu na terra e fundou a dinastia Khön (Apud AMIPA.S.G. The opening of the lotus. Londres. Wisdon Publications. 1987. p. 138) Era muito importante não
interromper esta linhagem]. Eles disseram a meus pais para não perderem a esperança e ofereceram um dos seus melhores mestres para viajar com eles, o Lama Ngawang Lodro Rinchen. Representava grande perda para o Mosteiro,
mas ele era um Lama muito poderoso que poderia realizar todos os diferentes rituais, e em particular suas preces tinham causado o nascimento de crianças em mulheres incapazes de ter filhos antes [sua irmã Jetsun Kushola já tinha nascido]. Depois disto Lama Ngawang Lodro Rinchen viajou com meus pais,
e juntos fizeram muitos rituais e preces para que nascesse um filho. Por fim ficou claro que as preces foram atendidas, e meus pais foram para Tsedong, uma pequena e agradável cidade perto de Shigatse. Decidiu-se que ali era um bom lugar para uma criança nascer, particularmente talvez pela sua reputação como lugar de nascimento de muitos grandes mestres Sakya, como
Ngachang Chenpo Ngawang Kunga Rinchen. De fato eu nasci no mesmo quarto de Ngachang Chenpo [2 Ngagchang Kunga Rinchen (1517-1584) é o 27° mestre detentor da linhagem do Lamdré que começa com Virupa. Sua
Santidade Sakya Trizin é o 44°]. Um outro problema nasceu: a sucessão de dias inauspiciosos astrologicamente. Como meus pais queriam que eu nascesse num dia auspicioso, muitas preces foram feitas. E eu não nasci num dia ruim: nasci no primeiro dia do oitavo mês tibetano (7 de setembro, 1945), que é considerado muito bom. Diz-se que foram vistos sobre a casa arco-íris, e uma imagem de Guru Rinpochê foi oferecida a meu pai, o que eram bons sinais [3 Guru Rinpochê foi introdutor do Budismo no Tibet. “Rinpochê” quer dizer “precioso”]. Mas naturalmente eu não sabia de nada disto.
P. O que acontece quando um filho nasce na sua família sagrada?
R. A primeira coisa, logo que a criança nasce, é que a letra DHIH, a letra de Manjusri [4Manjusri é o Bodissátua da Sabedoria que tudo atravessa. Os Bodissátuas permanecem na Existência para ajudar aos seres. Manjusri é simbolizado com uma espada (que tudo atravessa) e um lótus sobre o qual está o livro da Perfeição da Sabedoria. S.S. Sakya Trizin é considerado uma emanação de Manjusri].
DHIH representa palavra e sabedoria, é escrita na língua da criança com um néctar especial feito de açafrão e muitas outras coisas.
P. Quando o Senhor foi para Sakya?
R. Isto foi depois. Conforme eu disse, que meu nascimento foi celebrado em Tsedong, e foi depois disso nossa família fez uma pequena peregrinação ao famoso santuário de Guru Rinpochê no Sul do Tibet. Depois disso nós retornamos a Sakya onde meu nascimento foi celebrado de novo de maneira mais elaborada.
P. Seus pais morreram quando o Senhor ainda era muito pequeno, não?
R. Sim. Eu não posso lembrar-me de minha mãe. Ela morreu quando eu tinha dois ou três anos, mas eu me lembro de sua irmã, minha tia. Ela foi como uma mãe, para mim. Meu pai morreu em 1950, quando eu tinha cinco anos. Disso eu me lembro muito bem.
P. Quantos anos tinha o Senhor quando os seus estudos começaram?
R. Eu tinha cinco anos. Naquele mesmo ano. Lama Ngawang Lodro Rinchen deu-me minha primeira lição sobre o alfabeto. Nós fomos a um especial altar de Manjusri em Sakya, onde ele me deu a consagração de Manjusri e Achala, e então foi trazida uma antiga cópia do alfabeto Tibetano escrita em ouro, que era usada especialmente pelos filhos de nossa família.
Lama Ngawang leu as letras em frente da Imagem de Manjusri e eu repeti depois dele. Isto era a cerimônia. Depois disto eu tive outro mestre de leitura.
P. Os seus estudos espirituais também começaram?
R. Sim. Tive de memorizar e recitar preces a Manjusri. Lembro-me claramente de tudo isto. Depois da cerimônia, tinha de soletrar sete horas por dia, seis dias por semana, por aproximadamente dois anos. Nós Tibetanos dizemos que quanto mais você pratica soletrando, mais rapidamente você estará apto a ler.
P. Onde o Senhor recebia ensinamentos religiosos nesse tempo?
R. Eu recebia consagrações freqüentemente. De fato, eu recebi de meu pai as bênçãos de Amitayus [nota 5 Buda para longa vida. Ele é uma transformação de Amitaba] para longa vida logo que nasci. Quando eu tinha quatro anos, recebi de meu pai a Consagração de Vajra Kila (Dorje Phurba)[nota 6: Divindade Nyngma que a Ordem Sakya também herdou. Sua prática elimina o ódio e as guerras, além de outras atividades]. Lembro-me
disso muito claramente. Estava sentado no colo de uma atendente pessoal muito querida, e lembro-me, também, quando meu pai deu a parte irada da consagração [nota 7: Consagração ou Wang significa ‘Iniciação’, transmissão, autorização]. Ele estava usando um chapéu e um costume de dançarino do chapéu preto e desempenhou os rituais de dança. Lembro-me mesmo de quem tocou os instrumento musicais!
P. Onde aconteceu isto?
R. No Palácio Dolma. O Palácio Dolma é um enorme palácio, com três principais santuários e muitas outras salas. Ao todo tem cerca de oitenta quartos, e todos os ensinamentos eram dados numa dessas salas de santuário [nota 8: Infelizmente, depois da invasão chinesa o Palácio Dolma foi destruído. Nada se sabe sobre os tesouros artísticos que abrigavam (quadros, estátuas etc). Quando a família Khon fugiu para o exílio, nada levou, pois não
houve tempo nem condições como se vai ler adiante].
P. O Senhor saía algumas vezes do Palácio?
R. Ah, sim, mas não freqüentemente para a cidade. Havia uma área aberta muito ampla de campos ao redor do Palácio, e o rio corria quase perto. Quando não estava estudando, eu costumava sair com um atendente para brincar junto com outras crianças.
P. Quando seus estudos religiosos começaram seriamente?
R. Comecei a estudar leitura no verão de 1950, e no outono fui para o Mosteiro Ngor onde recebi o Esotérico Caminho-Resultado (Lamdré). Meu Guru para isso foi o Lama Ngawang Lodro Shenphen Nyngpo. Abade de Khangsar, Abadia de Ngor [nota 9: o famosíssimo Lama Ngawang Lodro Shenphen Nyngpo (1876 - 1953) é o 6° detentor da linhagem Ngor (uma das sub-seitas Sakya). Foi o principal Guru de Sakya Trizin. Tinha altíssimas realizações espirituais].
P. De que maneira o Senhor se lembra dele?
R. Ele era um Lama muito sagrado, muito avançado espiritualmente, sempre muito calmo, muito lento nos movimentos, e ele fazia tudo com muita perfeição. Naquela época já era muito velho. Ele proferiu o ensinamento em seu próprio quarto para um pequeno grupo, talvez trinta ao todo. Naquele tempo eu era muito pequeno e quase não conseguia ler. Lembro-me de que eu
estava no colo de Khangsar Shabdrung, o sucessor Abade, que segurava as páginas em minha frente e assim eu podia ler as preces introdutórias cada dia. Enquanto o Abade estava ensinando a parte Mahayana pude entender bastante bem, mas não pude entender a seção Tântrica muito bem [nota 10: Mahayana e Tantraiana serão explicadas adiante]. Fiquei muito tempo com o Abade, e enquanto isso continuava a prática de soletração e leitura, lendo algumas biografias. Fiquei cerca de quatro meses em Ngor, estudando, e depois retornei a Sakya.
No ano seguinte visitei Lhasa pela primeira vez e encontrei Sua Santidade o Dalai Lama que me confirmou como “designado Sakya Trizin”. Fiquei quatro meses em Lhasa visitando muitos mosteiros ali e no Tibet Central. Nós visitamos Nalanda e também Samyé, e então retornamos através do Sul do Tibet onde visitei muitos lugares sagrados e mosteiros em peregrinação [nota 11: Lhasa é a capital do Tibet. Nalanda e Samyé são famosos mosteiros].
Durante aquelas visitas eu trabalhava duramente memorizando o Hevajratantra, que é o texto básico da prática religiosa Sakya.
Então, no início de 1952, fui entronizado numa cerimônia simples; como eu era então muito jovem a entronização total viria mais tarde. Eu tive de recitar completo o Hevajratantra em frente do colégio dos monges oficiais e mestres do mosteiro tântrico em Sakya: isto era considerado um teste de habilidade por que todos os monges tinham de passar. Eu tinha apenas seis anos, mas é com
felicidade que digo que passei recitando tudo corretamente. Depois disto, assisti à recitação mensal daquele Tantra por todos os monges do Mosteiro Tântrico: era a primeira cerimônia a que eu assistia ali. Depois deixei Sakya para assistir à entronização do Panchen Lama em Shigatse, que durou muitas semanas. Naquela viagem eu já fui com a total dignidade e acompanhamento
de um Sakya Trizin.
Retornei a Ngor no verão para receber o Ensinamento Esotérico Caminho-Resultado (Lamdré) de Khangsar Khenpo [nota 12: A palavra Khenpô significa “mestre em filosofia”, não é nome próprio. Significa Professor Khangsar], durante o qual ele teve de freqüentemente parar para dar outros Ensinamentos, como as instruções de Vajra-Yogini, o Zenpa Zidel e muitas outras importantes instruções. Ao todo. o curso durou um ano, até que eu tive de retornar a Sakya, a pedido dos chineses, para algumas palestras. No início de 1953, outra vez retorno a Ngor para retomar os estudos ali, mas infelizmente Khangsar Khenpo faleceu justamente antes que tivesse terminado o total ensinamento o que foi concluído por seu sucessor.
Retornei a Sakya antes de setembro porque naquele ano eu testemunharia a cerimônia anual do ritual de Vajra Kila, que ocorre sempre no sétimo mês tibetano [mais ou menos em setembro]. A seguir iniciei um retiro de meditação de Hevajra no Palácio Dólmã [nota 13: Hevajra é o principal tantra Sakya. Tantra é um texto relacionado à prática de uma divindade, no caso Hevajra. O Tantra de Hevajra foi transmitido por Vajra Nayratma (consorte de Hevajra) ao mestre indiano Virupa (837 - 909) no ano de 897, ano de
Cristo. Após isto, Virupa se tornou um Mahassida, ou seja, um ser tão poderoso que era capaz de imobilizar o Sol com um sinal de sua mão. Os ensinamentos derivados do Tantra Hevajra são chamados de Lamdré (caminho que inclui o resultado)].