sábado, 3 de maio de 2008

A MISSÃO DE PURNA


Olavo Bilac


(Do Evangelho de Buddha)
[Mantivemos a grafia original]



Ora Buddha, que, em prol da nova fé, levanta
Na India antiga o clamor de uma cruzada santa
Contra a religião dos Brahmanes, - medita.

Immensa, em torno ao sabio, a muldidão se agita :
E há nessa multidão, que enche a planicie vasta,
Homens de toda a especie, Aryas de toda a casta.

Todos os que (a principio, enchia Brahma o espaço)
Da cabeça, do pé, da côxa ou do antebraço
Do deus vieram á luz para povoar a terra :
- Kchátrias, de braço forte armado para a guerra ;
Çakias, filhos de reis; leprosos perseguidos
Como cães, como cães de lar em lar corridos ;
Os que vivem no mal e os que amam a virtude ;
Os ricos de belleza e os pobres de saúde ;
Mulheres fortes, mães ou prostitutas, cheio
De tentações o olhar ou de alvo leite o seio ;
Guardadores de bois ; robustos lavradores ,
A cujo arado a terra abre em fructos e flores ;
Creanças ; anciãos ; sacerdotes de Brahma ;
Párias, Sudras servis rastejando na lama ;
- Todos acham amor dentro da alma de Buddha,
E tudo nesse amor se eterniza e transmuda...
Porque o sabio, envolvendo a tudo, em seu caminho
Na mesma caridade e no mesmo carinho,
Sem distincção promette a toda a raça humana
A bemaventurança eterna do Nirvana.

Ora, Buddha medita...
Á maneira do orvalho,
Que, na calma da noite, anda de galho em galho
Dando vida e humidade ás arvores crestadas,
- Aos corações sem fé e ás almas desgraçadas
Concede o novo credo a esperança do somno :
Mas... as almas que estão, no horrivel abandono
Dos desertos, de par com os animaes ferozes,
Longe do humano olhar, longe de humanas vozes,
A rolar, a rolar de peccado em peccado?...

Ergue-se Buddha :
"Purna!
O discipulo amado
Chega :
"Purna ! é mister que a palavra divina
Da agua do mar de Oman á agua do mar da China,
Longe do Indus natal e das margens do Ganges,
Semeies, atravez de dardos, e de alfanges,
E de torturas ! "
Purna ouve sorrindo, e cala...
No silencio em que está, um sonho doce o embala.
No profundo clarão do seu olhar profundo
Brilham a ancia da morte e o desprezo do mundo.
O corpo, que o rigor das privações consome,
Esqueletico, nú, comido pela fome,
Treme, quasi a cahir, como um bambú com o vento;
E erra-lhe á flor da bocca a luz do firmamento
Presa a um sorriso de anjo...
E ajoelha junto ao Santo :
Beija-lhe o pó dos pés, beija-lhe o pó do manto.

"Filho amado ! - diz Buddha - essas barbaras gentes
São grosseiras e vis, são rudes e inclementes ;
Se os homens (que, em geral, são máos os homens todos)
Te insultarem a crença, e a cobrirem de apodos,
Que dirás, que farás contra essa gente inculta ? "

"Mestre ! direi que é boa a gente que me insulta,
Pois, podendo ferir-me, apenas me injuria...

"Filho amado ! e se a injuria abandonando, um dia
Um homem te espancar, vendo-te fraco e inerme,
E sem piedade aos pés te pizar, como a um verme ?
"Mestre ! direi que é bom o homem que me magôa,
Pois, podendo ferir-me, apenas me esbordôa...
" Filho amado ! e se alguem, vendo-te agonisante,
Te furar com um punhal a carne palpitante ?

" Mestre! Direi que é bom quem minha carne fura,
Pois, podendo matar-me apenas me tortura...

" Filho amado ! e se, emfim, sedentos de mais sangue,
Te arrancarem ao corpo enfraquecido e exsangue
O ultimo alento, o sopro ultimo da existencia,
Que dirás, ao morrer, contra tanta inclemencia ?

" Mestre ! direi que é bom quem me livra da vida...
Mestre ! direi que adoro a mão boa e querida,
Que, com tão pouca dôr, minha carne cançada
Entrega ao summo bem e á summa paz do Nada ! "
" Filho amado ! - diz Buddha - a palavra divina,
Da agua do mar de Oman á agua do mar da China,
Longe do Indus natal e dos valles do Ganges,
Vae levar, atravez de dardos e de alfanges !
Purna ! ao fim da Renuncia e ao fim da Caridade
Chegaste, estrangulando a tua humanidade !
Tu, sim ! pódes partir, apóstolo perfeito,
Que o Nirvana já tens dentro do proprio peito,
E és digno de ir prégar a toda a raça humana
A bemaventurança eterna do Nirvana ! "



Bilac, Olavo. Poesias. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1916:243.