quarta-feira, 8 de março de 2017

O PAPEL DA MULHER NA ESPIRITUALIDADE

O PAPEL DA MULHER NA ESPIRITUALIDADE
Por
JETSUN CHIMEY LUDING
Palestra no IBAM - Rio de Janeiro em agosto de 1997


            Em primeiro lugar quero lembrar que, de acordo com os princípios budistas, não se faz muita distinção entre as condições masculina e feminina. Mas quero começar referindo-me a uma deidade feminina chamada TARA. De acordo com o aspecto relativo havia, há muito tempo, uma princesa, filha do Rei Yeshe Dawa. Ela recebeu Ensinamentos do Buddha de sua época e se tornou Iluminada. Desde então ela fez um voto ao seu Guru-Buddha, de que enquanto houvesse seres a serem socorridos ela permaneceria neste reino. Isto nos faz pensar no papel da mulher na vida espiritual. Na linhagem Sakya muitas mulheres atingiram as mais altas realizações espirituais. E no que se refere a este tema devo dizer que todas as mulheres podem atingir todos os níveis da espiritualidades igualmente como os homens.
            Para seguir um caminho espiritual que seja simples e melhor existe um pré-requisito que é apropriado para todos. Devemos tornar a nossa mente mais humilde e de certo modo "domar" a mente. Isto é, dependendo do aspecto mental de cada um, desenvolver o amor e a compaixão.
            Dentro no Budismo Tibetano existem várias técnicas de treinamento da mente. Uma delas é a de se separar dos quatros [apegos]. Dentro da linhagem Sakya existe a técnica de estabelecer os quatro estágios para o desenvolvimento espiritual. Na escola Kagiupa e Gelugpa existe o método dos sete pontos de treinamento da mente. Um praticante sério deve seguir este elenco de treinamento, ou pelo menos deve tentar amar a todos os seres como a seus próprios filhos. Por exemplo, se o praticante é uma mulher, e se é uma dona de casa, ela tem um papel muito importante – o de manter a família unida. Dessa maneira as mulheres têm um papel muito importante. Você deve sempre se lembrar do papel que você desempenha na sociedade e deve trabalhar sempre para se lembrar disto constantemente.
            É um fato conhecido que para manter a família unida a mulher desempenha um papel insubstituível e básico. Quando a família é harmoniosa e feliz, esta sensação, esta paz se espraia ao redor, na circunvizinhança, e todos os que estão próximos se sentem bem e são influenciados por aquele bem-estar, por aquela paz. Se você puder realizar isto você estará modificando a sociedade em que vive e possuirá um papel vital no seu meio como um grande exemplo. E como me lembro bem da função da mãe de família, realço também que esta função pode ser a de todos nós nas nossas relações em sociedade.
            Nunca é demais lembrar-se de que não há nada que a mulher não possa fazer, é necessário relembrar-se sempre disso para encorajá-las a agir corretamente. Nos Ensinamentos Vajrayanas do Budismo Tibetano existe um aspecto muito especial da feminidade, ou seja, se diz que o aspecto feminino do Buddha é seu aspecto de Sabedoria. Por outro lado, se você criar uma idéia de que é muito boazinha, pode incorrer num tipo de erro grave sobre si mesma que é muito prejudicial para você e para o meio em que você vive.
            Existe uma técnica da maior importância na base dos Ensinamentos Budistas que se chama "Treinar os dez atos virtuosos". Esses dez atos virtuosos se assemelham muito a certas práticas cristãs. Eu gostaria de enfatizar que ficaria muito feliz se vocês pudessem realizar este tipo especial de treinamento ao longo do caminho de vocês. Talvez haja entre vocês quem já tenha ouvido estes Ensinamentos de diferentes lamas de diferentes escolas. Mas também talvez haja quem nunca os tenha recebido, e por isso eu gostaria de detalhar um pouco estes dez atos virtuosos fundamentais.
            Existem três ações a serem treinadas referentes ao corpo, quatro da palavra e três da mente.
            Não matar, não se apropriar das coisas dos outros e não ter uma atividade sexual errônea ou tê-la de qualidade – são as ações referentes ao corpo.
            Dos atos da fala, não falar palavras enganosas, não falar mentiras, falar coisas verdadeiras – eis o primeiro ponto. Não falar palavras que ponham as pessoas umas contra as outras, palavras que dividam as pessoas – eis o segundo ponto. O terceiro é não falar palavras que não tenham sentido, como fofocas ou coisas fúteis, tagarelice. O quarto seria falar suavemente, de maneira doce, não usar palavras duras.
            Com referência às três ações mentais o treinamento seria: primeiro, em vez de ter pensamentos nocivos, negativos, desenvolver pensamentos positivos; em vez de ter pensamentos que desejem ferir, desenvolver pensamentos harmoniosos que façam os outros sentirem-se bem. O segundo ponto seria em vez de desejar, de querer para si as coisas dos outros ficar feliz com os outros terem as suas coisas. E o terceiro é não ter visões errôneas, ou seja, em vez de alimentar ilusões passar a ter uma visão correta.
            Aqueles que estiverem interessados nas práticas budistas devem sempre e a toda hora estarem atentos a estes dez pontos básicos de treinamento da mente. E mesmo que vocês não estejam interessados no budismo, se treinarem esses dez pontos vai ser muito benéfico para vocês e para os outros. E o fato é que se a pessoa experimentar ir além da inveja e da raiva há de surgir algo de muito benéfico para ela e para os outros.
Essa felicidade não se aplica somente às pessoas, homens e mulheres. Mesmo o menor inseto deseja felicidade. No processo de desejar a felicidade para si e para todos é que se faz esse treinamento dos dez pontos. No devido tempo algo vai acontecer, a felicidade. E mesmo que nós não nos lembremos de todos os detalhes dos dez pontos, se nós tivermos um coração gentil e suave para com os outros isto já vai ser de muita valia para o treinamento.
            Existe um provérbio budista que diz que quem tem um bom coração também tem uma boa vida – este é um provérbio que se deve ter sempre na lembrança.
            Portanto quero relembrar aqui que a mulher é o pilar em que a família se sustenta, e é como mulher que eu mesma me treino neste caminho e consigo diminuir a minha raiva e a minha inveja, e isso é uma coisa benéfica para todos. É o que faz valer a pena ser mulher.
            Sendo mulher, o mais provável é que se case e que tenha filhos. A mulher tem a responsabilidade de criar e educar os filhos, e esta atividade tem de ser exercida da melhor maneira possível para que se crie os fundamentos de uma sociedade melhor.
            Fala-se hoje muito em paz mundial, mas esta paz começa sempre dentro de casa, dentro da mente, é isso que cria as condições da harmonia geral, pois tudo começa ali dentro, se há harmonia interna, mental, isto vai criar as bases da paz no mundo.
            Bem, eu falei várias coisas aqui e vocês só escutaram. Agora eu peço que vocês façam uma reflexão sobre tudo isso que eu disse. Saibam que, de um modo geral, não gosto de fazer palestras públicas, pois acho que não as faço bem, não sou muito de falar em público. Mas quero acrescentar que no início desta palestra fiz uma prece fervorosa para que tudo que eu falasse fosse de benefício para todos vocês.


            Pergunta: O que são as Dakinis?
            S. E. Jetsun Kusho: Eu não sei muito sobre Dakinis, mas posso falar sobre uma mestra do budismo que é considerada uma Dakini. O nome dela é Thinley Wangmo. Ela é uma ioguine muito realizada no Vajrayana, e ela é considerada a própria Vajrayogine. Quando era jovem foi para o Leste do Tibet para aprender o Dharma com muitos mestres. Depois, ela foi para o Khan, no Oeste, para o grande Mestre chamado Khientse Wangpo. E o mestre Wangpo pensou: "como sou um mestre ordenado, não fica bem ir até o caminho para recebê-la. É melhor que eu mande alguém e que eu fique aqui, esperando". Quando Thinley Wangmo entrou, o mestre a viu entrando conduzida por dois protetores do Dharma, um de cada lado de seus braços. Ela era muito especial. E o mestre então naquele momento compreendeu que ela não era uma pessoa comum, que ela era um Bodhissátua e uma grande devoção surgiu dentro dele.
            Pergunta: A senhora tem a capacidade de fazer cura?
            S. E. Jetsun Kusho: No sentido estrito de cura, tal como você perguntou, eu não faço. Mas no treinamento da mente que tive, há práticas de buddhas ligados a esses aspectos, à longevidade, à saúde e assim por diante, como o Buddha da Medicina.
            Pergunta: Qual sua impressão sobre o Rio de Janeiro?
            S.E. Jetsun Kusho: Fiquei muito bem impressionada pelo lugar, pelas pessoas interessadas no Dharma e também (e isso é muito importante) para a sobrevivência do Dharma no Brasil. Estou feliz por isso. O Dharma depende do trabalho interno de cada um. A harmonia e o modo de como o Dharma vai-se desenvolver depende de como cada um se desenvolve. A isso devemos estar atentos. Em alguns lugares o Dharma chegou e não permaneceu. Sua permanência depende de cada um, da harmonia e do esforço de cada um.
            Pergunta: Como evitar que os filhos sejam problemáticos?
            S.E.Jetsun Kusho: Existe um aspecto muito importante que toda mãe deve lembrar-se quando cuida de sua família: Eu mesma sou mãe de quatro filhos, moro no Canadá, e tenho uma profunda experiência de ser mãe. Por sorte não tenho nada ruim com meus filhos. Mas já vi muitas famílias passando por momentos muito difíceis. Há algo que observei, e disso eu quero falar agora, que se refere às amizades de nossos filhos. Se as crianças passam muito tempo na escola com seus amigos esses amigos exercem uma influência muito grande. Isso é o que se passa nos Estados Unidos e no Canadá, e talvez se dê também por aqui. Faz muita diferença o fato de a mãe ficar sempre atenta a que tipo de amigos os filhos têm, com quem estão andando e como se relacionam. Faz muita diferença. Se eles andam com bons amigos isso vai bem e a influência será bem positiva. Se os amigos não são bons vai haver problema grave. Isso se reflete na família como um todo. É muito urgente estar atento às amizades em todos os sentidos.
            Pergunta: Que fazer quando o relacionamento homem-mulher vai mal?
            S.E.Jetsun Kusho: Há algo de que devemos lembrar é que, de acordo com os Ensinamentos budistas, o relacionamento depende do carma. Se essa pessoa não gosta de você, por mais que você tente, você não vai conseguir. Além disso, se nós gostamos de alguém e essa pessoa não gosta da gente, isso é uma coisa como se fosse um apego, algo voraz. Mas quando algo assim acontece você deve fazer tudo o que for possível para realizar as suas aspirações, e se nada der certo deve-se conscientizar de que não é assim e que deve haver outras possibilidades. Você também pode fazer preces ao Buddha, ao Dharma e à Sangha pedindo suas bênçãos para que consiga suas aspirações comuns.
            Pergunta: Geralmente se associa o aspecto feminino à sabedoria. Será que Jetsuma poderá explicar melhor esta questão?
            S.E.Jetsun Kusho: A mulher como aspecto feminino da sabedoria é ensinado no Tantra e um outro nome para Tantra é "guia", ou "sana" em tibetano, que significa "secreto", são os ensinamentos secretos. Entra no cômputo dos ensinamentos secretos do Buddha. Significa que não são ensinamentos comuns, para serem falados em público. Eu não posso saber se aqui há pessoas que já receberam ensinamentos tântricos. Quando me referi ao aspecto feminino da sabedoria não pensava em entrar nessa questão mais profundamente. Pode ser ensinada, mas só em condições apropriadas.
            Pergunta: Como praticar no Rio de Janeiro, se aqui não temos nenhum lama por perto? Nós já tivemos um Gueshe, mas ele se foi...
            S. E. Jetsun Kusho: Em primeiro lugar cada um de vocês deve trabalhar arduamente para compreender o significado de refúgio no Buddha, no Dharma e na Sangha. Em segundo lugar deve fazer um esforço para aprender o Dharma de um professor, de qualquer professor. Em terceiro lugar, aqui no Rio de Janeiro existem pessoas ligadas a grupos de Dharma, existem praticantes que estão fazendo suas práticas diárias e você deve conectar-se com essas pessoas para aprender e é sempre bom que essas pessoas estejam abertas para ensinar o que sabem, para ajudar. É uma coisa natural da vida, em qualquer aspecto da vida, inclusive na prática do Dharma, que há bons e maus momentos. Quando vêm os tempos ruins nós devemos aprender com isso, tirar proveito disso, com o Dharma a gente aprende a paciência. Se a paciência pode ser treinada quando tudo vai mal, então algo de muito positivo vai surgir, vai surgir a harmonia, não vai haver a desintegração, o conflito, a divisão. Se vocês agirem assim o Dharma vai florescer naturalmente, ele não vai morrer. Mas existe algo mais a acrescentar. Existe uma palavra tibetana que significa "se dar", ou dar-se bem com todos, uns com os outros. Devemos fazer um esforço para evitar dois perigos: a inveja e o orgulho. Estes podem ter um efeito devastador, desagregador. Evitando a inveja e o orgulho, estando atento aos dois, nasce uma energia boa, a harmonia.
            Pergunta: Hoje a mulher tem de trabalhar para ajudar no sustento da casa. Qual o papel do homem na estrutura dessa nova família?
            S.E.Jetsun Kusho: Eu não sei. Mas sou mulher e mãe, e trabalhei duro para criar quatro filhos. Só posso dar o testemunho de minha experiência pessoal. Sei que trabalhei muito, acordava muito cedo para ter tempo de fazer minhas práticas diárias de meditação. Aí começavam os trabalhos de casa. Depois eu saía, costumava sair às sete horas da manhã para trabalhar. Eu trabalhava oito horas por dia. O marido também trabalhava. Um trabalhava de dia, outro trabalhava de noite. Quando eu trabalhava de dia, os trabalhos de casa eram feitos por meu marido. Quando voltava para casa, no fim da tarde, continuava a fazer os trabalhos de casa, o jantar etc. Nós dois, eu e meu marido, sempre trabalhamos juntos, sempre compartilhamos o trabalho, nunca houve uma demarcação nítida de qual era o trabalho de um e de outro. Fazíamos o que tinha de ser feito no momento. Como somos pessoas comuns, havia sempre os pequenos problemas. No meu caso, quando algo não me agrada, tento ter paciência. Meu marido também tenta ser paciente. A paciência é algo que funciona. A paciência é básica tanto para a vida espiritual quanto para a vida cotidiana. Além disso, o casal tem de ter confiança um no outro, mutuamente.
            Espero que essas palavras sejam de algum benefício para vocês.
            Pergunta: "Como praticar o que você ensinou aqui?"
            S.E.Jetsun Kusho: Você é estudante de Budismo?(...)Neste caso, como expliquei antes, focalize sua meditação no aspecto do Refúgio e depois se concentre na prática de evitar as dez ações não virtuosas. Concentre-se nisso, trabalhe com isso. É claro que você tem de desenvolver o aspecto da paciência também porque purificar o carma com a prática das dez ações virtuosas não é tão fácil assim. A paciência é o primeiro passo dessa prática. Você deve prosseguir e se aprofundar nesse caminho de praticar esses dez pontos e assim se liberar do carma negativo. Agora pretendo terminar e vamos recitar algumas preces de dedicação.
"Por esse mérito, que todos os seres obtenham a Onisciência. Que todas as atividades mundanas causadas pelos três venenos do apego, do ódio e da ignorância – como lutas e desrespeitos – sejam anuladas. E que possam todos os seres sencientes ser liberados do universal oceano de calamidades provocadas pelas tempestuosas ondas do nascimento, doença, envelhecimento e morte!"

(Trad. do tibetano: Lama Pema Wangdack; e do inglês: Ida Berstein.  Transcrição da fita por R. Samuel para SAKYA KUN KHIAB CHÖ LING  Que por este mérito possam todos os seres atingir o estado de Buddha.)